segunda-feira, novembro 03, 2003

SACI –PERERÊ A AVE FEITICEIRA

Nenhum dos velhos cronistas do Brasil Colonial registrou o Saci como é conhecido no Sul do país. Nem Vasconcelos, Anchieta, Soares de Souza, Gandavo, Fernão Cardim, Staden, Thevet, Abbeville, Evreux, Nóbrega, frei Vicente do Salvador, João Daniel incluem o Saci entre as curiosidades assombrosas da terra nova. Nem Marcgrave, Morisot (nas notas de Roulox Baro), Jacob Rabi, nenhum autor holandês lembra as andanças do Saci.

Saci, ave

Saci – Tapera naevia. Também chamado Sem-fim. Etym: h –ã (h-ang) cy = o que é mãe das almas. (Cf. Baptista Caetano: 3,86; porque segundo a lenda, chupa a alma dos defuntos. O h demonstrativo corresponde a Y e tornar-se ç = s, quando se fixa ao termo; ã por ang = alma, e cy mãe. Para outros é onomatopaico. A superstição popular faz dessa ave uma espécie de demônio, que pratica malefícios pelas estradas, enganando os viandantes com as notas de seu canto e fazendo-os perder o rumo.

Mas a identificação do Saci-ave não fácil nem uniforme. A Tapera naevia é chamada, no Nordeste brasileiro, Peitica e também Sem-Fim. Peitica é ainda a Empidonomus varius Viell, a popular Maria-já-é-dia. Com igual nome há uma Elaenia, a Elaenia flavogaster. O “Alma de Caboclo” (Diplopterus naevius) é dado como sendo o Saci. É o mesmo Piaya cayana, de Linneu que, ensina Snethlage, tem mais três sinônimos: O xicoã ou Tincoã, Pássaro-feiticeiro, Pássaro-pajé, Uira-pajé. Guarda ele o espírito dos mortos, “chupa a alma dos defuntos”, na definição de Batista Caetano de Almeida Nogueira.

A impossibilidade de localizar o Saci num pássaro é a mesma que se luta para identificar o Uirapuru, a ave fantástica do Amazonas, égide suprema, cheia de mistérios, reunindo derredor de si todos os pássaros seduzidos pelo seu canto irresistível. Lehmann-Nitsche mostra, sem insistir pela característica, que as aves que possuem fabulário têm esse canto disperso e melancólico. Pelo canto ninguém é capaz de encontrar o Urutau, a triste “Mãe da Lua” das nossas matas. Caprimulgos, Strix possuem o sinistro domínio do pavor. Muitas vezes, no sertão de minha terra, a “Remington” de repetição pronta para o tiro, procurei o “Vem-Vem”, de dia, ou a “Mãe da Lua” à noite, guiado pelo seu insistente lamento ou obstinado assobio. Ouvia-o por todos os lados como diluído na mataria. Nunca consegui alvejar um só desses pássaros, razão para aumentar-lhes a fama do disfarce e da impossibilidade de uma descarga certeira e feliz.

Da origem lendária do pássaro, Barbosa Rodrigues recebeu uma estória que publicou na Poranduba Amazonense. No mundo amazônico o Saci é mito ornitomórfico e não andromórfico. Há Saci-ave. Não há Saci-moleque. Esta é a lenda do rio Solimões.

Um tuixaua tinha dois filhos e vivia feliz com eles. O tio odiava os sobrinhos e convidou-os para ajudá-lo numa derruba de árvores para fazer um plantio. Os dois sobrinhos aceitaram. Chegados na floresta, o rio embriagou os dois rapazes e matou-os. Depois, um dos assassinados perguntou ao outro: o que foi que tu sonhastes ? Sonhei – diz o segundo – que nós nos lavávamos com carajuru. – O mesmo sonhei eu. E voltaram para a casa da avó. Vendo-os, a velha ia aquecer o jantar, mas os dois netos disseram: Ah! Minha avó, nós não somos mais gente, e sim só o espírito. Assim seja, minha avó, nós te deixamos e quando ouvires cantar “Tincuan! Tincuan! Foge para casa e quando cantarmos “Ti...ti...ti” então reconhecerás. A cor vermelha que os netos tinham nos olhos era o sangue. Ficaram, desde então, mudados em dois pássaros de agouro, de mistério e de morte. Um í o Uira-Pajé, Alma de Caboclo, o Sem-Fim, o Saci. O outro é Mati-taperé. Ambos, nascidos numa tragédia, espalham desgraças e semeiam pavores.

O carajuru é a Bignonia chica ou Lundia chica, ensina Barbosa Rodrigues. É um cipó de cujas folhas se extrai um pó vermelho-vivo que os indígenas empregam na pintura de tecidos, uso de remédios e especialmente na “pajelança”, feitura de puçangas, etc.

Saci – Casta de pequena coruja que deve o nome ao grito que faz ouvir repetidamente durante a noite. É pássaro agourante. Contam que é a alma de um pajé, que não satisfeito de fazer mal quando deste mundo, mudado em coruja vai à noite agourando aos que lhe caem em desagrado, e que anuncia desgraças a quantos ouvem. O nome de saci é espalhado do Amazonas ao Rio Grande do Sul. O mito, porém, já não é o mesmo. No Rio Grande é um menino de uma perna só que se diverte em atormentar à noite os viajantes, procurando fazer-lhes perder o caminho.. Em São Paulo é um negrinho que traz um boné vermelho na cabeça e freqüenta os brejos, divertindo-se em fazer aos cavaleiros que por aí anda toda a sorte de diabruras.

O Saci é a Mati-taperê, a Matinta-pereira dos paraenses e bares. Já em 1875 Gonçalves Tocantis registra sua presença nas tradições dos índios Munducurus. Mas os indígenas tinham a Matinta como a visita de seus antepassados. Uma ação de presença das “almas”. A Matinta era, como Acauã, o beija-flor, portadores do espírito dos mortos. A Matinta atual é o corpo que abriga o espírito de um ser vivo. Por encantamento alguém se pode mudar em Matinta e voar durante a noite, espalhando pavor. Pela madrugada volta à forma humana. A Matinta dos Munducurus não era assim. Com o Saci se dá o mesmo. Ninguém pode tornar-se Saci e andar pedindo fumo pelos caminhos noturnos. Saci é Saci a vida inteira. Mas o que se deduz é ter Barbosa Rodrigues coligido o mito quando de sua forma primitiva e sagrada. Um sinônimo do Saci, uma visão assombradora, mas sobrenatural.

Stradelli já descreve a Matinta em sua metamorfose atual, dando-a como uma pequena coruja e explicando, para maior confusão com os mitos do Saci, do Caapora e do Corupira, que:

..segundo a crença indígena os feiticeiros e pajés se transformam neste pássaro para se transportarem de um lugar para outro e exercer suas vinganças. Outros acreditam que o Mati é uma Maáyua, e então o que vai à noite gritando agoureiramente é um velho ou uma velha de uma perna só, que anda aos pulos.

Escreve o mesmo sobre a Maty-taperê:

Maitiî-taper-ê, o pequenino propenso às ruínas (tapera), isto é, o ente minúsculo que gosta das taperas ou vive nelas. Em verdade, Matiî exprime coisa muito pequena, o vulto insignificante. Taperê é taper-ê, que quer dizer – propenso ou dado às ruínas. Para o gentio brasileiro o maty-taperê é um gênio maléfico, refugiado nas aldeias abandonadas, e que perseguia a quem, imprudente, delas se avizinhava.. Costuma a andorinha aninhar-se nesses lugares e, por isso, o índio a apelidava – taperuá – que quer dizer morador das taperas ou ruínas. Daí o dizer-se que o maty-taperê tomava sempre a figura de um pássaro pequenino, como a andorinha, e assim se disfarçava (Tupi na Geografia Nacional, 3ª edição. Bahia, 1928).

Pelo que possuímos em lendas, tradição oral, depoimentos, sabemos que a Matinta nada tem que ver com ruínas. Aparece de noite nas vilas, cidades, povoados, atravessando o espaço com seu grito arrepiante. Não castiga nem persegue quem visita as taperas. Ninguém sabe onde a Matinta está residindo. Os paraenses e amazonenses de hoje apontam velhas como possuindo o condão de mudar-se em Matintas. Ouvindo o seu grito os moradores prometem em voz alta, fumo. Pela manhã uma velha mendiga aparece esmolando. É a Matinta que vem cobrar a promessa.

Barbosa Rodrigues ensina que o mito do Saci se confundiu com tantos outros, especialmente derredor das aves de canto disperso ou, como esse pássaro que tem o hábito de pousar numa só perna, dando a impressão de ser unípede. O Saci quando tornado mito andromórfico só terá uma perna e Lehmann Nitsche levá-lo-á aos astros, identificando-o com a Ursa Maior.

Poder-se-à dizer, evidentemente, que a ave ou aves que determinam o mito da Matinta são as responsáveis pelo Saci atormentador. O mito é, pelo que me parece, inicial e unicamente ornitológico. Ainda é de notar que no sul do Brasil o Saci-pererê como o moleque ágil, não retoma a forma de ave. Saci sulista não guarda o segredo da Matinta paroara.

Texto extraído do Geografia dos Mitos Brasileiros de Luís Câmara Cascudo.

Este texto foi postado na lista Wytcheriebrazil por Monologal.

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