30 de abril de 1982. Véspera de meu aniversário de 14 anos.
Eu estava animada, já que minha mãe prometera um almoço fora
e talvez um cinema, um passeio para estrear a jaqueta jeans novinha que eu
tanto pedira. Vivíamos uma época difícil, de dinheiro curto. Por sorte, minha
avó materna e meu tio (que também é meu padrinho) nos acolheram depois da
separação complicada de minha mãe, um escândalo na época. E foi a primeira
separação da família inteira, de todos os lados... Hoje é algo mais comum,
embora ainda sofrido. Naqueles tempos, ainda havia uma carga de preconceito bem
grande, cheguei a ouvir de vizinhos que uma das meninas da rua não poderia
brincar conosco por sermos filhas de mulher separada!!
Enfins. Meu pai vinha nos ver todos os domingos, nos levava
para almoços nos tios portugueses, o que nos permitia conviver mais com a
família do lado dele, foi algo ótimo! Eu e minha irmã percebemos que ele passou
a nos dar mais atenção depois do que antes da separação... Com o tempo, as
coisas assentaram e continuamos a nossa vida de crianças normais que éramos:
escola, turma da rua, às vezes um passeio, biblioteca, estudar, etc. No meu
caso, eu ainda precisava tirar notas boas, porque bolsista não pode sequer
considerar repetir o ano na escola. Era minha responsabilidade principal, dizia
minha mãe. E sempre me esforcei, uma forma de compensar pelo tanto que ela trabalhava:
de dia como esteticista em uma clínica, à noite como professora universitária,
chegava a lecionar em 2 ou 3 faculdades porque professor não ganhava bem
naquela época. Apesar dos títulos de mestre e doutora que ela tinha, o salário de
professor era menos que o necessário para manter duas filhas pequenas, por isso
ela procurou outra opção que rendesse mais, mesmo que fosse mais simples.
Em 1982, já fazia alguns anos que mamãe às vezes passava
mal. Mal mesmo: uma úlcera a fazia vomitar panelas e panelas de sangue. Depois
de 1979, ela não conseguiu mais esconder de nós tais incidentes, mas a
pior crise foi a que aconteceu na véspera de meu aniversário de 14 anos. Nesse
dia, ela chegou do serviço de táxi, por volta das 10 da noite, já se sentindo
mal. E começou o pesadelo. Pouco depois que ela começou a vomitar, a levamos
para o hospital, que graças aos Deuses era do outro lado da rua. Eu me recusei
a sair de perto: acompanhei o desespero na voz das enfermeiras, que pediam por uma
lupa para tentar localizar uma veia, qualquer uma, para começarem uma
transfusão de sangue de urgência. Vi a correria do médico para estabilizar o
estado de mamãe. Percebi quando ela perdeu a consciência.
Dá pra ver muita coisa do lado de fora da porta aberta de um
quarto de hospital.
Foi uma noite infernal. Por volta das 4 da manhã,
conseguiram me arrastar para casa, porque até então eu continuava em volta da
porta do quarto onde ela estava, com sua situação levemente estabilizada. O
hospital cuidou dela como pôde, mas no dia seguinte meu tio Álvaro solicitou a
transferência para o hospital de Mogi das Cruzes no qual ele trabalhava como
médico. Os médicos duvidavam que mamãe conseguisse sobreviver à viagem de 2
horas em ambulância, mas concederam a transferência.
Ela conseguiu. Viveu ainda mais 9 anos e 7 meses.
Quando essa crise aconteceu, a maior preocupação dela era
que minha irmã Ana só tinha 10 anos e precisaria de apoio até se tornar adulta.
E mamãe pediu novamente que eu tomasse conta da Ana, que era tão pequenina. Assim
eu fiz.
Fiz também o secretariado técnico, porque mamãe julgava que eu conseguiria trabalho bem remunerado com certa facilidade (e foi o que realmente ocorreu). Por ela, encarei ainda a faculdade de secretariado: minha formatura aconteceu 20 dias antes dos meus 21 anos. E trabalhei muito para juntas darmos conta da vida, até que ela se foi por causa do câncer causado por essa maledeta úlcera que não se conseguia curar...
Sempre estive presente quando ela precisou. E agradeço
imensamente por tudo que ela me proporcionou...
Mas por que estou contando isto tudo agora? É que durante o
meu ginásio e até mesmo no colegial, eu nunca contei dos problemas de saúde que
enfrentávamos em casa. Eu simplesmente deixava quieto, pensava que ninguém precisava saber
e eu definitivamente não queria virar a “coitadinha” da minha turma de
ginásio... Mas convenhamos: não há como continuar a ser criança depois de
conviver por algum tempo com pessoas seriamente doentes. E foi isso que
aconteceu comigo e com a minha mana Ana. Hoje estou mais à vontade para contar
que sim, nós vivemos tudo isso. Foi como aprendemos que, apesar dos problemas,
temos mais é que aproveitar plenamente a vida.
Exatamente como a minha mãe fez. :-)